“De modo geral, os textos que tratam da questão da utopia como uma localização possível de uma boa sociedade aceitam uma organização “imaginada” a partir de um marco zero. Destarte, estabelecem uma “marcha para trás”, num retrocesso irrefreável que pode chegar ao próprio Jardim do Éden como a primeira utopia humana. As paradas consagradas dessa “marcha” usualmente ocorrem na República, de Platão, na Utopia, de Thomas More, ou na Cidade do Sol, de Tommaso Campanella, para culminar nas utopias socialistas do século XIX ou mesmo em cidades imaginadas do século XX, como a cidade radieuse, de Le Corbusier, ou a industrial, de Tony Garnier.
Em uma lista interminável, esses “locais” possuem em comum sua
essência – são não-lugares ou bons lugares (eu-topos) – e o projeto de comunidade ou sociedade ideal, cujos princípios são refletidos na organização espacial.”
Cristina Meneguello, Doutora em História e Professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Por volta da metade do século XX, dois fatores marcantes se definem na configuração das ciadades e do seu planejamento: a ferrovia, com seus percursos urbanos e estações, e a promulgação das leis sanitárias aplicadas ao antigos espaços centrais deteriorados dos grandes centros industriais, assim como o restante da cidade. Naquele momento, se confrontavam duas visões: “a dos socialistas que afirmam: todas as etapas da geração e distribuição de riquezas podem ser realizadas da melhor maneira possível pela comunidades; e a dos individualistas, que sustentam que a melhor seria que estas coisas fossem deixadas aos indivíduos.”
Ebenezer Howard (1850-1928), nascido na Inglaterra, é considerado pré-urbanista do século XIX e teórico da cidade-jardim. Aos 21 anos viajou para Nebraska, EUA, por motivos de saúde e trabalhou como jornalista em um jornal de Chicago. Em 1876 retornou para a Inglaterra, tornando-se em 1879, um militante socialista.
Inglaterra durante a Revolução Industrial |
Howard fez sua síntese conciliadora tomando “emprestado do socialismo sua larga concepção de esforço comum e seu vigoroso conceito de vida municipal, e do individualismo, a preservação do auto-respeito e da confiança em si mesmo. “A essência do plano era que a comunidade controlasse a terra e que todos os lucros provenientes do aumento do seu valor pudessem reverter para a comunidade, a fim de desencorajar qualquer tipo de especulação.” (GIEDION, 2004)
Aos 48 anos Howard publicou, em 1898, o livro Tomorrow: A Peaceful Path to Real Reform, revisado e reeditado com o título de Garden Cities of Tomorrow, em 1902. O marcante êxito do livro contendo suas propostas deve-se, em grande parte, à eficiência com que sintetizou um século de incomum desenvolvimento econômico, convivendo com extremos de miséria e deterioração em cidades em contínuo crescimento, o que provocava debates e evidenciava aspirações da sociedade inglesa, frutos das grandes mudanças e conflitos gerados pela Revolução Industrial.
“Ele aspirava nada menos que à abolição dos males da Revolução Industrial, à eliminação dos cortiços e dos apinhados bairros industriais. Tudo deveria ser conquistado sem suscitar o antagonismo de qualquer grupo, nem mesmo dos proprietários. Esperava-se criar novas formas de riqueza pública por meio de uma completa inversão de valores, sem nem mesmo esperar que algum partido político solitário a tais princípios estivesse no poder.” (GIEDION, 1995)
Seu livro mostra com simplicidade e admirável objetividade, ideias que, além de estarem perfeitamente vinculadas à tradição cultural de seu país, apresentavam viabilidade financeira e eram economicamente realizáveis. “Howard concebeu essa sua cidade como uma comunidade de ajuda mútua auto-suficiente, produzindo pouco além de suas necessidades.” (FRAMPTON, 1991)
Ebenezer Howard propôs muito mais do que a harmonia entre homem e natureza. Apresentou uma política para a manutenção do equilíbrio social, ameaçado pelas sórdidas condições de urbanização das camadas populares inglesas durante o século XIX. Planejou não só as formas, as funções, os meios financeiros e administrativos de uma cidade ideal, sadia e bela, mas, principalmente, um processo para satisfazer as massas e controlar sua concentração nos centros metropolitanos.
Ebenezer Howard propôs muito mais do que a harmonia entre homem e natureza. Apresentou uma política para a manutenção do equilíbrio social, ameaçado pelas sórdidas condições de urbanização das camadas populares inglesas durante o século XIX. Planejou não só as formas, as funções, os meios financeiros e administrativos de uma cidade ideal, sadia e bela, mas, principalmente, um processo para satisfazer as massas e controlar sua concentração nos centros metropolitanos.
Em 1899 fundou a Associação das Garden-Cities, e em 1903 adquiriu Letchworth. Chamou os arquitetos Parker e Umwin para projetar a cidade que foi chamada de Letchworth, atingiu grande êxito, chamou atenção dos jornais de Londres e atraiu jovens. A atmosfera na cidade era excitante e prazerosa e, em 1962, alcançou 26.000 habitantes. Em 1919, Howard instalou a segunda cidade-jardim em um terreno a 15 Km de Letchworth, chamada Welwin.
Plano de Letchworth |
Letchworth |
"Cada cidade poderia ser vista como um ímã, cada pessoa como uma agulha. A partir disso, fica evidente que nada aquém da descoberta de um método de fabricação de ímãs com poder de atração maior que o de nossas cidades será eficiente para redistribuir a população de uma forma espontânea e salutar."
Ebenezer Howard, em seu livro Cidades-Jardim de Amanhã
Diagrama dos três ímãs, Ebenezer Howard |
A cidade-jardim foi projetada para ser construída no centro de 2400 hectares, ocupando somente 400 hectares, com 30.000 habitantes em área urbana e 2.000 habitantes em terrenos agrícolas circundantes. Uma forte atenção é dada aos cuidados sanitários junto a área urbana, e um cinturão de belos jardins e pomares extramuros são métodos utilizados para alcançar o propósito final: "caminhar poucos minutos e alcançar o ar perfeitamente fresco, a relva e a visão de um horizonte longíquo". Outra preocupação de Howard, não menos importante que a primeira, é mostrar a possibilidade de se alojar a baixo custo sem prejuízo da qualidade ambiental.
Quando uma cidade atingisse a sua capacidade de suporte, novas cidades deveriam ser formadas em torno de uma cidade central de 58.000 habitantes, formando um conjunto de cidades interligadas por meio de ferrovias e rodovias. Os habitantes poderiam chegar à outra cidade em poucos minutos através de um transporte rápido. As indústrias ficariam na periferia ao longo da linha férrea, facilitando o escoamento da produção. A área agrícola seria constituída por fazendas, cooperativas ou particulares.
Ebenezer Howard faleceu em 1928, aos 78 anos. Suas idéias foram implementadas em muitas partes do mundo, até mesmo no Brasil, em estados como São Paulo, Goiânia e Rio de Janeiro. Seu pensamento influenciou também profundamente no planejamento inglês após a segunda Guerra Mundial, quando as cidades tiveram de ser repensadas.
Atualmente, dois fatores marcantes se definem na configuração das cidades e do seu planejamento: a rodovia, com seus percursos urbanos, e o desafio das leis e acordos ambientais aplicados à cidade. Neste momento, trazemos uma visão imparcial diante do problema. Não temos soluções disponíveis e, ignorar a realidade é o que mais tem sido feito. Quase sempre recorremos ao passado para buscar alguma situação parecida, mas a verdade é que o mundo nunca viu algo parecido.
Para alguns teóricos o advento da cidade-jardim pode ser considerado uma utopia, assim como os vários planos de cidades elaborados no período chamado pré-urbanismo. E atualmente, é normal pensarmos, de fato, numa cidade-jardim como uma fantasia. Porém, se ao invés de negar todas as tentativas do passado, nós as utilizarmos para construir lugares melhores, estaremos à frente de qualquer pessoa que tente resolver o problema se preocupando somente em olhar para o futuro.
Um projeto só deixa de ser uma utopia quando sai do papel, porém se nele permanecer, não será considerado um retrocesso e sim um processo livre e espontâneo de uma boa imaginação.
Goiânia, vista da rodovia que dá acesso à cidade |
Para alguns teóricos o advento da cidade-jardim pode ser considerado uma utopia, assim como os vários planos de cidades elaborados no período chamado pré-urbanismo. E atualmente, é normal pensarmos, de fato, numa cidade-jardim como uma fantasia. Porém, se ao invés de negar todas as tentativas do passado, nós as utilizarmos para construir lugares melhores, estaremos à frente de qualquer pessoa que tente resolver o problema se preocupando somente em olhar para o futuro.
Um projeto só deixa de ser uma utopia quando sai do papel, porém se nele permanecer, não será considerado um retrocesso e sim um processo livre e espontâneo de uma boa imaginação.
Referências:
CHOAY, F. O urbanismo: utopias e realidades, uma antologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.
MENEGUELLO, Cristina. A cidade industrial e seu reverso: as comunidades utópicas da Inglaterra Vitoriana.
FRAMPTON, Kenneth. História Crítica da Arquitetura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
GIEDION, S. Building in France, Building in Iron, Building in Ferroconcrete. Getty Research Institute, 1995.
Por Jéssica Rossone