Ao longo da história, a Itália sempre esteve presente entre as nações que mais discutiam a preservação e a restauração dos bens, preocupadas com o seu patrimônio. Vários estudiosos italianos como Camillo Boito com a teoria do restauro filológico, e Cesare Brandi com a teoria do restauro crítico, tiveram seus textos traduzidos em vários idiomas e são muito estudados hoje em cursos superiores de Belas Artes, História da Arte, Arquitetura e Engenharia e em especializações em Conservação e Restauro, por exemplo. Além destas, a Itália foi o berço de outras teorias importantes como a do restauro histórico de Luca Beltrami e o pensamento de Gustavo Giovannoni.
A explicação para o desenvolvimento de todas estas teorias é particularmente ligada a quantidade de bens em solo italiano e a sua longa história, cronologicamente falando, representada por meio de todo o patrimônio cultural, artístico e histórico. A Itália é o país que detém o maior número de itens incluídos na lista de patrimônio da humanidade com 49 itens, seguido da China com 45, e da Espanha com 44 itens. O Brasil ocupa o 11º lugar na lista, juntamente com a Austrália, os dois com 19 itens cada um.
Além disso, a construção deste pensamento preocupado com o futuro dos bens faz parte da cultura do povo europeu, são valores passados de pai para filho. Não é preocupação com o passado, mas com o futuro dos bens. Muitas vezes, no pensamento prático americano, um país com pouco mais de 500 anos não tem muitos bens a preservar se comparado a países europeus, com séculos de história. E mais do mesmo acontece em cidades brasileiras há muito tempo, com o seu patrimônio e identidade esquecidos em prol do progresso. Em contrapartida, o continente americano investe cada vez mais em tecnologia e sistemas práticos e digitais, o que confere um ponto positivo na realização de projetos.
No dia 14 de novembro de 2013, durante as atividades da disciplina de Restauro Architettonico oferecida este semestre pela Università di Bologna, eu e alguns amigos brasileiros participamos do evento Conferenza di Restauro Architettonico - Valorizzare il patrimonio culturale.
Ao lado do Prof. Eng. Claudio Galli, Prof. Arq. Giovanni Carbonara faz a abertura do evento |
Este evento serviu para intensificar o aprimoramento de sistemas digitais para a modelação 3D em projetos de restauro arquitetônico, com a discussão do livro Modelli Complessi per il Patrimonio Architettonico-Urbano, organizado por Mario Centofanti, do departamento de engenharia civil da Università degli Studi dell’Aquilla, Anna Marotta, do departamento de arquitetura e design do Politecnico di Torino, Michela Cigola, do departamento de engenharia civil e mecânica da Università di Cassino, Elena Ippoliti, do departamento de história, desenho e restauro de arquitetura da La Sapienza Università di Roma e Roberto Mingucci, do departamento de arquitetura da Università di Bologna.
A conferência, organizada também pelo professor da disciplina Prof. Ing. Claudio Galli, contava com a presença de outros arquitetos ligados à pesquisa. Mario Docci e Giovanni Carbonara foram convidados especiais que contribuíram com uma visão mais alargada do tema.
Giovanni Carbonara, mestre da Scuola Romana de restauro e um dos mais renomados teóricos da atualidade, tem a sua teoria baseada na definição de restauro transcrita a seguir:
“S'intende per "restauro" qualsiasi intervento volto a conservare e a trasmettere al futuro, facilitandone la lettura e senza cancellarne le tracce del passaggio nel tempo, le opere d'interesse storico, artistico e ambientale; esso si fonda sul rispetto della sostanza antica e delle documentazioni autentiche costituite da tali opere, proponendosi, inoltre, come atto d'interpretazione critica non verbale ma espressa nel concreto operare.”
(Giovanni Carbonara, in Che cos'è il restauro? Nove studiosi a confronto, (da un'idea di B. Paolo Torsello), Venezia, Marsilio, 2005)
Ou seja, se entende por restauro qualquer intervenção voltada a conservar e a transmitir ao futuro, facilitando a leitura e sem cancelar os traços da passagem do tempo, as obras de interesse histórico, artistico e ambiental.
Atualmente ele é professor da disciplina de Restauro Architettonico na Università degli Studi di Roma "La Sapienza" e diretor da Scuola di Specializzazione in Beni Architettonici e del Paesaggio. É também conselheiro do Centro di Studi per la Storia dell'architettura em Roma.
Atualmente ele é professor da disciplina de Restauro Architettonico na Università degli Studi di Roma "La Sapienza" e diretor da Scuola di Specializzazione in Beni Architettonici e del Paesaggio. É também conselheiro do Centro di Studi per la Storia dell'architettura em Roma.
O Professor Carbonara conversou com os alunos abertamente sobre o tema e no intervalo do evento respondeu gentilmente algumas questões feitas pelo O Thau do Blog. Antes de tudo, expliquei a ele o nosso interesse em estudar restauro na Itália, em buscar as teorias italianas e disse que queria saber a opinião dele sobre a nossa situação em relação a preservação do nosso patrimônio.
Prof. Arch. Giovanni Carbonara e Jéssica Rossone (OTDB) |
Professor Carbonara, qual é a sua visão em relação ao patrimônio colonial e moderno brasileiro e qual é o melhor modo de preservá-los quando temos tantas obras novas, como por exemplo as obras feitas para a Copa Mundial de Futebol de 2014 e para outros eventos?
Olha, a minha impressão é que o problema seja um problema de caráter geral, não só em relação ao patrimônio brasileiro, italiano ou espanhol. Quando uma pessoa se confronta com o patrimônio histórico é como o valor que é dado historicamente, isto é, tem a questão do reconhecimento do valor do bem.
Como é avaliado, considerado. Como é sentenciado. E o mesmo vale para as obras modernas.
O patrimônio do século XIX, muitas vezes, não é reconhecido como portador de um valor estético, social, histórico. Então ele se torna susceptível a transformações, modificações por razões práticas, intervenções de reforma ou modernização, e não um verdadeiro restauro.
Os desenvolvimentos teóricos já foram feitos essencialmente, o problema é hoje aplicá-los corretamente, e não é uma questão somente técnica mas sobretudo econômica e de vontade política. O problema é, na minha opinião, reconhecer o valor histórico destes bens como se fossem documentos em um arquivo, obras de arte em um museu: reconhecer estes valores e agir em conformidade com eles.
Ou seja, este reconhecimento, especialmente para a arquitetura contemporânea, é difícil. É que não é só um valor prático, mas um valor também de memória, de respeito por estes bens e, algo em relação a isso, seja pelas bibliotecas, pelos arquivos, pelas obras de arte. Somente para a arquitetura a importância prática muitas vezes é vista de uma maneira um pouco particular e interfere, nem sempre positivamente, com o restauro.
Então, eu penso que dependa muito daquilo que as pessoas imaginam para o futuro, se alguém acredita que o futuro possa ser construído também sobre o passado, não o desprezando, se trata de uma maneira certa. Eu vi o problema do grande estadio do...
Maracanã?
Sim, que era uma belíssima obra e que foi transformada em uma coisa que não se compreende o que seja, ou também estações ferroviárias. Depois vi coisas completamente diversas, de restauros modestos de grandíssimo interesse e construções simples conservadas porque a população reconhece nelas um valor.
Infelizmente a arquitetura ao contrário da arte se mescla confusamente com grandes problemas econômicos, políticos, de dinheiro, de uso, e consequentemente o reconhecimento, o tratamento respeitoso aos bens culturais é difícil. É ainda mais difícil quando falamos em arquitetura contemporânea.
Em relação a arquitetura colonial, vocês a reconhecem como seu patrimônio? Diria que sim, não? Não é uma arquitetura nacional que não tem um significado. É a história de vocês, diríamos não? São a base, os fundamentos.
Estas são atitudes culturais, isto é, de que modo uma pessoa quer construir o futuro? Acreditamos que, talvez, com o passado se pode aprender? Eu acredito que sim.
O restauro é não feito exclusivamente para os estudiosos, eruditos. Ele é feito para os jovens, para deixar o legado mais rico possível para as futuras gerações. Observar e percorrer uma bela arquitetura é como ler uma poesia, qual é o seu significado? Qual é o significado das obras antigas ou das obras modernas também belas, Niemeyer e assim por diante? Elas tem significado para a vida de hoje e de amanhã? Esta é a questão fundamental. Então, todo o resto vem depois. Estamos falando de valores culturais, espirituais, educativos e formativos, não somente econômicos ou práticos.
Me parece que, à parte do mundo latino, a posição anglo-saxã prevaleça com uma atitude economicista, sociologizante, politicamente correta e etc. Mais diferente e delicada, então, é a atitude em relação aos parques, jardins, à natureza.
É de baixo, de cada classe social, que deve vir o respeito pelas tradições. Considerá-las uma parte viva do nosso ser e não uma coisa mofada, depêche, velha. Então se pode falar, mas é importante respeitar. Se respeita, projeta bem.
E como se entendesse que eu quisesse saber quais eram as expectativas dele em relação a nós, estudantes brasileiros, disse:
Eu venho de uma Escola de Especialização de Restauro em Roma onde temos estudantes ibéricos, espanhóis, portugueses e também sul-americanos os quais história não sabem quase nada, mas são bons arquitetos, sabem projetar e se tornam ótimos restauradores porque entendem as razões de um modo de projetar diferente no qual o conhecimento histórico-crítico e o respeito aos testemunhos materiais do passado tem um grande papel. Não é que o restauro mumifica ou congela. Ele modifica, mas é necessário saber decidir em quais direções, com quais medidas. Mas um bom e culto arquiteto, capaz de ouvir as vozes de outras disciplinas também, sabe dar as respostas certas.
O Thau do Blog conversou ainda com um dos organizadores do evento e pesquisador da Università di Bologna, Roberto Mingucci e ele nos contou um pouco do trabalho que fez sobre o Brasil em parceria com Portugal.
"Nós fizemos um trabalho juntamente com o representante do Ministério Português que ainda mantém toda a documentação sobre o início das intervenções que hoje são históricas do início do Brasil como colônia portuguesa. É uma sensibilidade que vemos que está amadurecendo e tinham muitos pesquisadores brasileiros neste seminário que fizemos em Tomar. Foi o início de uma relação entre Brasil e Portugal, mediado pelo grupo bolonhês que fez esta intervenção."
O grupo brasileiro manifestou interesse em continuar esta relação. O patrimônio histórico e arquitetônico do Brasil a partir do século XVI é muito interessante e a mentalidade está mudando."
O Thau do Blog e todos os estudantes brasileiros presentes agradecemos esta oportunidade de estar frente a frente com estes mestres do restauro e a gentileza de todos eles de conversarem abertamente sobre o tema conosco.
Para saber mais sobre o trabalho do professor Mingucci entre neste link: http://disegnarecon.unibo.it/issue/view/341/showToc
Para trabalhos em português que citam a teoria de Giovanni Carbonara acesse o link: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/06.069/3104 ou www.teses.usp.br/teses/disponiveis
Alunos presentes no evento: Larissa Freire (UFMG), Kelly Tagliati (UFJF) Simone Becker (UNISINOS) Leonardo Cavalcante (SENAC-SP), Juliana Faria (Centro Universitário UNA).
Por Jéssica Rossone