Viollet-le-Duc |
Frequentemente ouvimos falar sobre o restauro de um bem arquitetônico, visitamos um palacete ou museu restaurado ou vemos algumas imagens.
Mas o que está por trás da teoria do restauro? Quais são os teóricos que fizeram história acerca do tema e hoje são estudados pelos restauradores? Será que a visão deles hoje é amplamente aceita ou é considerada ultrapassada?
Hoje nós vamos ver o fichamento do livro Restauro, de Viollet-le-Duc. A primeira versão em língua portuguesa do verbete “Restauro” de Eugène Emmanuel Viollet Le Duc, feita por Odete Dourado, tem como proposta a afirmação de Viollet Le Duc como um dos maiores teóricos da história da arquitetura europeia, ao lado de Leon Battista Alberti, mas também o reconhecimento de seu pioneirismo no que desrespeito às novas possibilidades da utilização do ferro na Arquitetura Moderna. Além disso, a publicação destaca a plena inserção de Le Duc no âmbito das contradições do século e do movimento racionalista do século XIX.
Viollet-le-Duc,
ao pensar no conceito moderno de restauração, estabelece os princípios de
intervenção em monumentos históricos e uma metodologia para tal em seu texto chamado
Restauro. Para explanar seus conceitos, ele utiliza quase sempre a arquitetura
religiosa, descrevendo exemplos de algumas situações que poderiam se apresentar
diante do restaurador e procedimentos passíveis de serem aplicados a elas,
enfatizando que ao intervir, estando o restaurador diante de duas opções
distintas de intervenção, “a adoção absoluta de um dos dois partidos pode
oferecer perigos, e que é necessário, ao contrário, não se admitindo nenhum dos
dois princípios de uma maneira absoluta, agir em razão das circunstâncias
particulares”. Sua racionalidade, lógica e coesão de ideias evidenciam a
importância dos levantamentos detalhados do edifício e atuação baseada em
circunstâncias particulares a cada projeto. Para ele, princípios absolutos
poderiam levar o restaurador a resultados incoerentes.
História da Arquitetura, Patrimônio Histórico e Cultural, Restauro.
Versão do livro On Restoration |
O texto se
inicia com uma consideração acerca do conceito de restauração, que para
Viollet-le-Duc não significa o ato de conservar, reparar ou refazer a obra, mas
restitui-la a “um estado de inteireza que pode jamais ter existido em um dado
momento”. Le-Duc viveu na França em uma época em que a restauração se firmava
como ciência, e logo ele afirma que tanto a palavra como a coisa são modernas. A
partir de então ele desenvolve o texto na busca do significado da palavra restauro
na história das civilizações. Ele evidencia que na Ásia, sempre que um templo
ou palácio estivesse degradado pela ação do tempo, construía-se outro ao seu
lado, enquanto isso, na Roma Antiga, refazia-se os edifícios. Ele deixa sua
visão de restauração quando cita que os gregos “longe de restaurar, ou seja, de
reproduzir exatamente as formas dos edifícios que tinham sofrido degradações”,
imprimiam a marca de sua época nos trabalhos que julgassem necessários.
Mais adiante
podemos perceber sua visão positivista quando diz que o tempo em que viveu
assumiu, até então, postura singular em relação ao passado, procurando
“analisá-lo, compará-lo, classificá-lo e formular sua verdadeira história”
seguindo os progressos da humanidade. Para ele, esta necessidade de analisar o
passado, deve-se justamente à rapidez dos progressos, e tal trabalho
retrospectivo proporcionaria a previsão de problemas futuros, facilitando, por
consequência, suas soluções.
O que distingue
a sua época é exatamente o estudo menos parcial do passado, provocando o
renascimento político, social, filosófico, artístico e literário e, logo, os
perscrutadores do passado são obrigados a vencer os preconceitos das pessoas
que veem nestas ações a perda de tradição.
Passadas estas
constatações, Viollet-le-Duc fala sobre a reação dos arquitetos e o
desenvolvimento da arquitetura, quando comparada às outras artes. Segundo ele,
por volta do fim do primeiro quarto do século, os estudos literários sobre a
Idade Média estavam bastante desenvolvidos, enquanto os arquitetos não tinham
sequer superado seus preconceitos aos arcos ogivais das catedrais góticas. As
igrejas medievais, devastadas durante a Revolução, estavam abandonadas desde
então. Segundo ele, “em todo caso, estas frases vazias, fizeram com que diversos
artistas se pusessem a examinar com curiosidade estes restos dos séculos de ignorância e de barbárie com a ajuda do Museu dos Monumentos Franceses, e de
algumas coleções. (...) Era necessário esconder-se para desenhar aqueles
monumentos construídos pelos godos, como diziam alguns doutos personagens.” O
autor então cita o espírito crítico de Vitet, que em 1830 foi nomeado Inspetor
Geral dos Monumentos Franceses e, no ano seguinte, endereçou ao Ministro do
Interior um relatório sobre as inspeções feitas por ele das províncias do
Norte, considerado uma obra prima nesse gênero de estudos. Le-Duc acreditava
que se este gênero de trabalho, aplicado aos monumentos medievais, poderia
gerar resultados ainda mais úteis. Para ele, Vitet foi o primeiro a se preocupar
com o restauro criterioso dos monumentos antigos e a formular ideias práticas
sobre o assunto, além de fazer intervir a crítica neste tipo de trabalho.
Le-Duc também
cita a obra História da Catedral de Noyon, escrita por Vitet anos mais tarde,
em que constata as etapas percorridas pelos estudiosos e pelos artistas ligados
ao mesmo estudo: “Com efeito, para conhecer a história de uma arte, não é
suficiente determinar os diversos períodos por ela percorridos em um
determinado lugar; é necessário também seguir sua trajetória em todos os
lugares em que foi produzida, indicar as variedades das formas de que
sucessivamente se revestiu e traçar o quadro comparativo de todas estas
variantes, levando em consideração não só cada nação, mas cada província de um
mesmo país”. Seria necessário citar boa parte de seu texto para demonstrar o
quanto progrediu no estudo das artes medievais.
Já em 1835,
Vitet havia abandonado a Inspeção Geral dos Monumentos Franceses para presidir
a Comissão dos Monumentos Históricos e suas funções agora eram confiadas a P.
Merimée e é em torno destes dois estudiosos que se forma o primeiro núcleo de
artistas com o intuito de penetrar no conhecimento íntimo destas artes
esquecidas. Nesta época, foram executados muitos restauros, muitos edifícios
foram não só estudados, mas também preservados da ruína, na França.
O autor
evidencia novamente que o programa de um restauro era então algo inteiramente
novo. Para ele, os restauros realizados anteriormente não eram outra coisa
senão substituições ou composições fantasiosas, mas que tinham a pretensão de
reproduzir formas antigas. A Igreja de Saint-Denis foi o local onde se
exercitaram os primeiros artistas que se interessaram pelo restauro. Le-Duc diz
que durante trinta anos a construção sofreu todas as mutilações possíveis e foi
necessário detê-los para retornar ao programa de restauro fixado pela Comissão
dos Monumentos Históricos.
Tal programa
promove que cada edifício ou parte deste deve ser restaurado no estilo que lhe
é próprio, não só como aparência, mas também em sua estrutura. Portanto, é
necessário antes de qualquer trabalho de reparação, o conhecimento da época e o
caráter de cada parte, segundo ele “compor uma espécie de dossiê apoiado em
documentos seguros, seja através de notas escritas, seja de levantamentos
gráficos”. Mais a frente, ele diz que os monumentos de certa época e de certa
escola podem ser restaurados por artistas de fora da província em que está o
edifício e que isso pode levar a questões como quando se trata de restaurar,
quer sejam as partes primitivas ou não, deve-se restabelecer a unidade de
estilo comprometida, ou então reproduzir o todo com as modificações
posteriores? Para ele, a escolha severa de uma das alternativas pode apresentar
riscos. Por isso, o arquiteto encarregado
por um projeto de restauro deve ser um construtor hábil e experiente e deve
conhecer os processos construtivos adotados nas mais variadas épocas e escolas
de arte.
O autor então
segue seu texto com várias demonstrações de como se deve prosseguir em diversas
ocasiões, fazendo sempre valer a ideia de que princípios absolutos podem
conduzir a absurdos, quando falamos de restauração. No caso de se refazer
partes de monumentos dos quais não restam vestígios, por necessidades
construtivas ou para completar uma obra mutilada, o arquiteto encarregado deve
se imbuir do estilo próprio do monumento cujo restauro lhe foi confiado. A visão positivista do autor se revel
novamente quando ele diz que “existe uma regra dominante que é necessário
sempre ter presente: não substituir as partes retiradas senão por outras,
executadas com materiais melhores, mais duráveis e perfeitos” para que o
edifício passe ao futuro com uma duração maior do que a que ele teve até então.
Outra observação
é que cada elemento deve ser proporcionado em relação ao monumento para o qual
foi composto. Caso a proporção seja alterada, o elemento tornar-se-á disforme. Além
disso, deve-se reforçar as partes novas, aperfeiçoando o sistema estrutural
para atingir maiores resistências, estudando previamente o comportamento deste
sistema. A escolha dos materiais também faz parte dos trabalhos de restauro, e
todos material retirado deve ser substituído por um de qualidade superior.
Deve-se sempre ter meios de prevenir acidentes, para inspirar confiança aos
operários e também prever qualquer consequência durante o processo.
Para
Viollet-Le-Duc os trabalhos de restauro forçaram os arquitetos a somar
conhecimentos, a se relacionarem mais com os operários, a instruí-los e formar
núcleos. Outra consequência benéfica foi que importantes indústrias ressurgiram,
que a execução da obra muraria tornou-se mais cuidadosa e que o emprego de
materiais se difundiu. A busca por recursos fez com que métodos regulares como
a contabilidade ou a gestão de canteiros tivessem início, nessa época. O hábito
de resolver problemas em construções foi introduzido nas comunidades, que até
então mal construíam casas simples.
A partir de
então o autor faz menção ao processo de centralização administrativa ocorrido
na França, fala sobre suas inegáveis vantagens, mas fala também sobre
desvantagens, já que as localidades secundárias ficavam excluídas de qualquer
progresso artístico. Le-Duc fala sobre os trabalhos de restauro realizados na
França sob a direção da Comissão dos Monumentos Históricos e do Serviço dos
edifícios ditos diocesanos: “não só salvaram da ruína obras de incontestável
valor, como também prestaram um serviço imediato”. Para ele, estes trabalhos combateram, até
certo ponto, os perigos da centralização administrativa no âmbito dos trabalhos
públicos.
Ao retornar às
dificuldades que se apresentam aos arquitetos restauradores e a indicação de um
programa proposto por pessoas de espírito crítico, o autor diz que tais
dificuldades não se limitam a fatos materiais uma vez que os edifícios
restaurados tem uma destinação, não se pode negligenciar este aspecto de
utilidade, para fechar-se inteiramente no papel do restaurador de antigas
disposições fora de uso. O edifício não deve ser menos cômodo após a
restauração, pelo contrário. O autor deixa claro que o melhor meio de
conservação de um edifício é dar-lhe uma destinação, desde que satisfaça
plenamente todas as necessidades que esta destinação impõe e sem que seja
necessária alguma mudança. “O melhor a fazer é colocar-se no lugar do arquiteto
primitivo e supor o que ele faria”. Sobre a colocação de novos elementos,
principalmente aqueles que podem aumentar o conforto dos usuários ou os que
podem evitar acidentes, Le-Duc diz “não devem ser adotados senão em casos
extremos; mas é necessário também convir que eles são muitas vezes impostos por
necessidades imperiosas; (...) para evitar mutilações e acidentes, é
compreensível”.
A fotografia
parece ter assumido um papel importante nos estudos científicos e no restauro
dos edifícios antigos. Com os meios comuns da época, como o desenho e a câmera
clara, era comum cometer algum esquecimento, descuidar de vestígios pouco
evidentes, mas com a câmera fotográfica as imagens são irrefutáveis e se tornam
documentos que podem ser consultados sempre. Sobre isso, ele diz que “nos
restauros jamais será excessivo o uso da fotografia, pois muito frequentemente
se descobre num negativo aquilo que passara despercebido no próprio monumento”
O autor finaliza
seu verbete atentando para que no âmbito do restauro, um princípio dominante é
aquele que leva em conta cada indício indicativo de uma disposição. “O
arquiteto só deve ficar inteiramente satisfeito e colocar os operários na obra
quando encontrar a combinação que melhor e mais simplesmente se adeque. (...)
Decidir uma disposição a priori, sem tê-la confrontado com todas as informações
necessárias, significa cair no hipotético, e nada é mais perigoso que a
hipótese”.
Conclusão:
Viollet Le-Duc
ao negar o ato de conservar, reparar ou refazer, afirma a restituição da obra,
ou seja, a reprodução de sua forma original, como o conceito que fundamenta a
restauração. Em toda a modernidade do conceito e da prática da restauração em
sua época, podemos destacar a visão racionalista e positivista em várias partes
de sua fala, principalmente quando aborda o futuro das edificações restauradas.
Para ele, a
arquiteto restaurador deve se conscientizar das formas e estilos do objeto a
ser restaurado, bem como sua identificação ao longo da história da arte, ter
postura crítica e analítica a partir de seu conhecimento, além das técnicas
utilizadas para sua construção, sua estrutura, anatomia e temperamento, pois
antes de tudo, é necessário que se reviva a arquitetura. O arquiteto deve
compreender a obra como se fosse de sua própria concepção. Tendo em mãos os
meios condizentes para a reparação do edifício e dominando as técnicas
necessárias, o arquiteto poderá iniciar seus trabalhos de restauração. Outra
observação importante é que o profissional não deve seguir uma conduta rígida e
absoluta no que desrespeito às decisões a serem tomadas diante de dificuldades
comuns no processo da restauração. Escolhas severas podem apresentar riscos à
obra. Porém, afirma que tais dificuldades não estão limitadas a fatos materiais
uma vez que os edifícios restaurados devem ter uma destinação e o melhor meio
de conservação de um edifício é exatamente dar-lhe uma destinação.
Os trabalhos de
restauro tiveram várias consequências benéficas para toda a comunidade, pois
forçaram os arquitetos a somar conhecimentos e a formar núcleos. O hábito de
resolver problemas em construções foi introduzido nas comunidades, que até então
mal construíam casas simples. A busca por recursos fez com que métodos
regulares como a contabilidade ou a gestão de canteiros tivessem início, nessa
época. E a invenção da fotografia como a temos hoje parece ter assumido um
papel essencial nos estudos científicos e no restauro dos edifícios antigos.
Referências bibliográficas:
VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel; DOURADO, Odete (apres. e trad.). Restauro. Salvador: Mestrado em Arquitetura e Urbanismo/UFBA, 1996.
Por Jéssica Rossone